Ao descobrir o morro a partir das diversas casas onde morou, a jornalista Mariana Albanese conta como essa vida nômade, que poderia ser um contratempo, também acabou se tornando uma forma única de viver os diversos Vidigais.
Abaixo, um trecho do capítulo “Casa da Dona Arlete”.
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A POUSADA
Todas as manhãs, antes do trabalho, subia alguns metros da rampa do 14 para pegar minha marmita no portão de Dona Arlete – aliás, sou das únicas a chamar ela de “dona”, mas não consigo evitar.
Pagava inacreditáveis R$ 6 por um prato de arroz, feijão, salada e carne.
Certa noite, fui pagar a conta pendente, e ela me chamou para entrar. O que vi ali mudou nosso rumo: uma varanda enorme, debruçada sobre o mar. Uma casa simples e linda. Bem cuidada, de três quartos, dois vazios após o casamento dos filhos. Ambos com vista direta para o mar. Na laje, uma lavanderia, um quarto em construção e mais uma vista espetacular.
Perguntei se ela gostaria de receber turistas em casa, contei da minha experiência com turismo comunitário no sertão do Ceará. Ela se animou.
Só faltavam os hóspedes, e o primeiro chegou tempos depois: um guia de turismo turco, que veio ao Brasil aprender português.
Depois dele, vieram franceses, uma chilena, um franco-português, um belga e um brasileiro.
Eu colocava o anúncio em português, mas 90% dos que procuravam eram de fora. A maior parte, estudantes que fugiam dos altos alugueis da Zona Sul.
Dona Arlete também passou a preferir os gringos (todos pagavam o mesmo valor), porque eles ficam mais tempo fora de casa, o que lhe dava mais privacidade. Há apenas um banheiro e a cozinha também era compartilhada por todos, então a escolha tinha razão de ser.
Ela parou de fazer comida para fora e a renda chegou. Estabeleci o valor de R$ 600 para o quarto pequeno e R$ 800 para o grande. Àquela altura, ainda se alugava uma quitinete no morro por menos que isso. Mas eu levei em consideração que as pessoas estavam pagando para viver a experiência de conviver com sua família, pelos seus quase 60 anos de história, pelo investimento que ela teve ali. Pela água que carregou morro acima, as fraldas que lavou no poço. Combinei que ficaria com 100 reais por quarto, e quando fui morar lá, apenas tive desconto no meu.
Naquele momento, um quarto de empregada em Ipanema, sem janelas, custava R$ 1.500.
Além da renda, o intercâmbio cultural foi fabuloso. Quando vieram ao Brasil, os pais do menino franco-português estavam preocupados com a ideia dele morar na favela. Mas a empatia ao conhecerem a casa e Dona Arlete foi tamanha, que acabaram se hospedando na casa da Carolina, filha dela, que mora logo embaixo.
O SIGNIFICADO DE UMA VIDA EM COMUM
Apesar da entrada cada vez maior de novas pessoas, a noção de “comunidade”, não como eufemismo para lugar pobre, mas de união entre os moradores, ainda continua muito forte.
No sentido de estarem todos em um território comum e zelar por ele. E percebi isso ao extremo na casa da Dona Arlete.
Pode parecer o maior clichê do mundo, mas a gente precisa de pouco dinheiro para ser feliz na favela. Era aquela coisa de andar o dia inteiro de chinelo e não precisar fazer pose, mas que ao contrário do que se pode supor, vai além do clima de praia. Uma impressão de estar sempre “em casa”. Se coloca roupa boa, as pessoas até te estranham. Perguntam se vai sair.
Há uma preocupação real (e não declarada) com o outro. Em um morro com 50 mil habitantes, aproximadamente, ninguém dorme na rua. No 14 há o Bené, alcoolatra, que poderia ser chamado de mendigo. Sempre tem um canto pra morar, uma fresta de casa de alguém. Comida não falta, desde que ajude a carregar mercadorias.
Se uma criança está longe de casa, sozinha, já perguntam: “cadê sua mãe?” Ou, se é conhecida: “tua avó sabe que você está aqui? Sabe mesmo?”.
E foi nas crianças que vi um senso comunitário enorme.
A Gabriela, neta da Dona Arlete, na época com 4 anos, um dia me chamou na casa dela. Queria me mostrar algo: “olha, Mariana! O Vidigal agora tem uma árvore de natal!”. A árvore estava em sua sala, e isso bastava para ser de todo o morro.
Em outro momento, dei uma bronca em um menino, de uniforme da escola, que jogava pedras num córrego. Tinha seis anos, e logo tratou de me explicar o que realmente estava fazendo: “Eu estou tentando impedir que essa água suja desça e polua o mar”. Ele queria fazer uma barragem com as pedras!
Posso me emocionar com pouco, mas realmente acho bonita a sensação de pertencer a um todo.
VIDIGAL, UMA BANDEIRA DE RETALHOS
No final dos anos 1970, enquanto boa parte da nata cultural brasileira fazia da Avenida Presidente João Goulart (então Estrada do Tambá) uma espécie de território mítico das artes, do outro lado os moradores do 14 dividiam um relógio de luz entre 50 casas, que eram de madeira com telhado de zinco, já que a construção de alvenaria ainda estava proibida.
Pela escassez de energia elétrica, ainda precisavam do lampião de querosene. Água encanada era privilégio de apenas uma residência, que fez uma espécie de “gato” no encanamento da Av. Niemeyer. O resto carregava baldes dos poços próximos (uma referência é a fonte que ficava perto do Vip’s Motel, na avenida).
Foi nessa época que Sergio Ricardo, cantor, compositor e cineasta, que ficou conhecido por episódios tão distintos quanto ter quebrado o violão no festival de 1967 e ter composto a trilha para o clássico do Cinema Novo “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, se mudou para o morro.
Em 1976, comprou um apartamento no Pedra Bonita – onde está até hoje – e um barraco (literalmente) na rampa do 14, próximo ao bar de Dona Conceição e de onde hoje fica a capela do Papa.
A ideia era fazer uma espécie de laboratório para escrever o roteiro do filme Zelão, mas logo soube que a prefeitura, então sob a gestão de Marcos Tamoio – que eles apelidaram de Tramóia –, queria derrubar não só sua casa, mas outras dezenas delas. A desculpa era o perigo de desabamento. A realidade, a intenção de construírem hotéis de luxo.
Por mim, a gente pararia minha história agora, e eu contaria em detalhes como foi a genial batalha entre o povo e o poder. Me emociona, me faz mais feliz saber que essa história existiu e que conheci seus personagens. Mas ela já está contada no livro “Resistência e conquistas do Vidigal”, de seu Armando de Almeida Lima, um dos fundadores da Associação de Moradores da Vila do Vidigal (AMVV), e que, sonho eu, um dia merecerá a atenção devida.
Voltando: com Sergio Ricardo intermediando os contatos, se envolveram na história desde o jurista Sobral Pinto, até o arcebispo Dom Eugênio Sales, passando por Oscar Niemeyer e Ney Matogrosso, que junto com Chico Buarque e outros, fez um show para arrecadar fundos para os moradores. Todos, em diferentes etapas, ajudaram o pessoal do 314 a permanecer em suas casas.
No ano seguinte, 1980, os setores progressistas da Igreja Católica, que apoiaram a luta contra a remoção, articularam a passagem do Papa João Paulo II por lá. Os moradores construíram uma capela em mutirão, correram para calçar minimamente a rampa, ainda de terra. Em plena ditadura, os pobres venceram uma armação estatal. Ninguém ia ter coragem de tirar eles de lá.
Naquela época, o Vidigal ficou conhecido como o “a favela do Papa”. Hoje o Papa deu lugar a adjetivos como “hype”, “chique” ou “favela da Globo” .
A história virou roteiro para cinema, e depois musical. Obra de Sergio Ricardo, que em 2012 estreou “Bandeira de Retalhos” no Casarão do Nós do Morro, com direção de Guti Fraga.
O VIDIGAL “PROFUNDO”
Já morando há mais de um ano por lá, comecei a me envolver nas questões internas, a conhecer o passado e tentar pensar no futuro. Passei a participar dos encontros do Fórum Intersetorial do Vidigal (FIV), que reunia mensalmente representantes de diversas instituições do morro, com ou sem fins sociais.
Cheguei em um momento histórico, que foi o começo da organização das primeiras eleições para a AMVV em anos. Era uma espécie de abertura política, que iria eleger o novo presidente da associação.
Foi um processo bem interessante e surpreendente pra mim, porque mostrou o quanto eu não conhecia nada do “Vidigal profundo”.
Foram debates em praça pública, uma disputa acirrada. Quem ganhou foi o Marcelo da Silva, mais conhecido como Marcelo Padeiro e que, como o próprio nome já entrega, era o responsável pelos pães que chegavam às casas cedinho – e, aproveitando o fluxo pelo morro, levava também as cartas do correio comunitário.
Foi a escolha mais popular possível. As cerca de três mil pessoas que votaram nas eleições de junho de 2012 escolheram alguém extremamente próximo a elas, e deixaram de lado outros dois antigos presidentes (Deley e Zé da Rádio), o dono da rádio local (Wanderley, da Estilo Livre) e o professor de futebol Cypa.
Não a toa tamanha necessidade de confiança. Especialmente no lado da “favela”, a associação tem poder de Prefeitura, intermediando os problemas com o “mundo externo”. Caiu um poste? Desabou um muro? Registro de compra e venda de imóveis? Briga de vizinho? Vai na AMVV.
Eles também intermediam a entrega de cartas (há uma agência dos Correios no morro, mas elas só são entregues pelo carteiro oficial nas casas do “IPTU”) e a limpeza comunitária.
O Vidigal já chegou a ter duas associações, uma para cada lado, o que mostra o quanto era partido. Até pouco tempo, apesar da boa vontade, eles não tinham muito como interferir no que acontecia do lado legalizado, mesmo porque são demandas totalmente diferentes.
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